12º Conto
A orelha esquerda tinha frio e
fome. Gostaria de saber se a orelha direita sentia o mesmo ou se se
aquecia com boné, com touca, eventualmente com radiador se estivesse a
funcionar, e se no frigorífico deixara um pouco de frango ou iogurte de
magnólias. Enfim, a orelha esquerda queria saber se a orelha direita
tinha mantimento e aquecimento.
O problema é que uma orelha nunca nunca viu a outra embora cresçam
na mesma terra, perdão, na mesma cabeça, durmam na mesma cama e até na
mesma almofada. Maldita situação geográfica, maldita esquerda e direita,
maldito sistema de antípodas (depois faço um desenho para explicar o
que é antípoda). Pois por causa de tudo isto, ambas as orelhas nunca se
viram mutuamente e embora sendo irmãs, ou primas ou digamos familiares chegados, nem podiam dar beijinhos uma à outra, ser amigas, zangarem-se,
consolarem-se, auxiliarem-se em caso de necessidade, enfim conviver.
A orelha (esquerda) sorveu um pouco de café de chicória aquecido e
pensou: há sempre alguém que sabe se a orelha direita é bonita e
pequenina e bem torneada como eu, modéstia à parte. Seria bom
perguntar-lhe. Mas a quem? Até o senhor de seu nariz, de seus olhos. de
sua boca, onde nós ambas temos função auditiva, não é capaz de ver ambas
as orelhas. Nem uma! Tinha de se recorrer a terceiros, mas como fazer?
Não se pode parar alguém na rua e dizer-lhe: «Ouça lá, compadre, observe
bem as orelhas e diga-me o que vê.» Se fosse um velho reformado,
responderia: - «Não vejo nada, menina. Os olhos já não servem e ontem
parti os óculos.» Se fosse um polícia, diria: »Tem bilhete de
identidade?». Se fosse uma mãe passeando um carrinho para gémeos, com
gémeos muitos parecidos sobretudo um, diria: - «Olha, também são gémeos
de orelhas, que engraçado! Tem na família gémeos ou aconteceu por
acaso?» Se fosse o vendedor de amendoins, diria: - «Toma lá um amendoim
para cada orelha, mas não maces mais, hoje o negócio corre mal.»
É difícil perguntar a terceiros alguma coisa. Não têm tempo, não se
interessam, fecham a boca à chave, não estavam, não estão, não estarão.
A orelha esquerda tinha frio e fome mas tinha também frio porque
estava só e tinha fome de saber coisas. Compreendeu: será tudo melhor
quando tudo e todos souberem de tudo de todos, quando esquerda e
direita, alto e baixo, perto e longe se confundirem, quando os
frigoríficos aquecerem os friorentos e os radiadores derem maçãs e peras
durante o inverno.
A orelha esquerda pensou ainda: pensar nisto é perder-se um bocadinho, mas só os perdidos serão achados, como diz a bíblia das orelhas.
Jorge Listopad
Mar seco, gelado quente. São 21 de repente
quarta-feira
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